Imagens de satélite mostram 3.808 hectares de áreas desmatadas em imóveis ligados à empresa Valor Commodities; degradação de APP e instalação irregular de drenos também ocorrem em outras propriedades do grupo, dono de 50 mil hectares no Mato Grosso do Sul
Por Tonsk Fialho e Carolina Bataier
“Isso tudo que cês tão vendo é meu”, aponta o latifundiário Antônio La Selva, vivido por Tony Ramos da novela “Terra e Paixão”. Na cena, o vilão caminha em meio a uma plantação de soja e mostra, orgulhoso, seu império agropecuário. O cenário é a Fazenda Annalu, no município de Deodápolis (MS) — rebatizada na novela como Fazenda La Selva. Foi ali onde a equipe da Rede Globo passou o mês de fevereiro de 2023 trabalhando nas gravações.
Lelinho posa em jatinho junto ao avô, Nilton Rocha Filho, autuado por desmatamento em 2000. (Foto: Reprodução/Instagram)
Usando chapéu, casaco de couro e botas, Tony Ramos encarna um fazendeiro caricato, de fala agressiva e gestos brutos. Na vida real, os donos do imóvel têm fala mansa e pinta de empresários, mas compartilham com La Selva a fome por terras e o histórico de violações ambientais em série, que não se limitam ao imóvel onde foi gravada a novela.
Registrada em nome de Aurélio Rolim Rocha, o Lelinho, a Fazenda Annalu é a joia da coroa entre os mais de 50 mil hectares controlados pelo grupo Valor Commodities, uma das maiores empresas de plantio e comercialização de soja e milho do Mato Grosso do Sul. A soma equivale a mais da metade da área total de Deodápolis, onde fica a propriedade. O grupo possui imóveis rurais em outros cinco municípios sul-mato-grossenses: Nioaque, Porto Murtinho, Caracol, Corumbá e Douradina.
Na primeira reportagem da série, De Olho nos Ruralistas mostrou o histórico de desmatamento em Reserva Legal e degradação de Área de Preservação Permanente (APP) na Fazenda Annalu, constatado em 2019 por uma vistoria realizada pelo Ministério Público do Mato Grosso do Sul (MPMS), fruto de um inquérito civil aberto no ano anterior: “Fazenda de “Terra e Paixão” tem desmatamento de reserva e despejo ilegal de agrotóxicos“.
Irregularidades similares foram constatadas em outras propriedades do grupo. A partir do cruzamento de dados dos sistemas de monitoramento por satélite Prodes Cerrado e Prodes Mata Atlântica, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), com as bases georreferenciadas do Sistema de Gestão Fundiária (Sigef), do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o núcleo de pesquisas do observatório identificou pelo menos 3.808,69 hectares de desmatamento em 24 de 45 fazendas identificadas. O número equivale a nove vezes o tamanho do Parque da Cidade, em Brasília (DF), o maior parque urbano do mundo.
FAZENDA DO COMPLEXO ANNALU FOI ALVO DE AÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
A violação mais antiga data de 2000, quando Nilton Rocha Filho, avô de Lelinho, o atual proprietário da Fazenda Annalu, recebeu três autuações do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) por desmatar 194 hectares de uma reserva florestal no município de Dourados (MS). Dos R$ 364 mil em multas aplicados pelo órgão, o fazendeiro quitou R$ 160 mil. A principal autuação, de R$ 200 mil, foi baixada após deferimento da defesa. A infração menor, de R$ 4 mil, foi cancelada após análise jurídica.
Já falecido, Nilton foi proprietário da fazenda de “Terra e Paixão” entre 2003 e 2005, ano em que vendeu o imóvel para a distribuidora de grãos Granol. Onze anos depois, em 2016, Lelinho recomprou a propriedade junto ao primo Nilton Fernando Rocha Filho. São eles que assinam o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) proposto em 2022 pelo MPMS para recuperação dos passivos ambientais da Annalu.
Entre a assinatura do TAC e o cumprimento das obrigações, Lelinho e Nilton Fernando Rocha Filho adquiriram a Fazenda Prateada, de 633 hectares, localizada ao sul da Annalu e a anexaram ao complexo. Imagens aéreas da propriedade, datadas de 2023, capturaram a customização de galpões da fazenda anexada, onde é possível ler o nome Annalu.
A exemplo da fazenda que serviu de inspiração para a trama global, a Fazenda Prateada foi alvo de uma Ação Civil Pública movida pelo MPMS, por conta dos danos ambientais gerados pela instalação de drenos irregulares. A antiga proprietária, a Agropecuária Riber, firmou um TAC se comprometendo a realizar a recuperação ambiental das Áreas de Preservação Permanentes (APP) dos córregos Mutuca e Iretã, o que foi cumprido por Lelinho ainda em 2022.
No caso da Fazenda Annalu, foram instalados 54 drenos para abastecer o megaprojeto de piscicultura do grupo Valor Commodities. Embora a obra tenha sido realizada sem licenciamento, a criação de peixes prosseguiu durante três anos, até a emissão de uma licença de operação pelo Instituto do Meio Ambiente do Mato Grosso do Sul (Imasul), em 2021. O caso foi detalhado na segunda reportagem da série: “Donos de fazenda de “Terra e Paixão” desviaram curso de rio e criaram peixes sem licenciamento“.
DO RIO DOURADOS AO RIO APA: IMPACTOS AMBIENTAIS SE MULTIPLICAM
Em 2015, Nilton Rocha Filho recebeu nova autuação do Ibama. Desta vez, o patriarca havia deixado de cumprir determinação do órgão ambiental que exigia medidas de controle para cessar a degradação ambiental na Fazenda Vaca Mocha, localizada no município de Caracol (MS), a 360 quilômetros de distância de Deodápolis, na região da Bodoquena, uma importante zona de transição ecológica entre o Cerrado e a Mata Atlântica.
De acordo com as imagens de satélite do Inpe consultadas pelo De Olho nos Ruralistas, a área degradada dentro do imóvel soma 1.862,74 hectares — mais da metade da área total, com 3.629,40 hectares. O número responde por 48,9% das manchas de desmatamento analisadas em imóveis da família Rocha. Pelo descumprimento das medidas, Nilton pagou ao Ibama uma multa de R$ 10 mil.
Em 2018, o fazendeiro foi implicado em um inquérito civil do MPMS, que apurava o dano ambiental causado às margens do Rio Apa, por não respeitar as APPs dos córregos intermitentes. O caso se assemelha à situação constatada na Fazenda Annalu naquele mesmo ano, com a construção irregular de benfeitorias no Rio Dourados.
A Fazenda Vaca Mocha é a sede da 3R Agropecuária, empresa registrada em nome de “três Rochas”, netos do patriarca por parte de seu filho Nilton Fernando Rocha. São eles: Anna Flávia Rocha, Felipe Guilherme Rocha e Nilton Fernando Rocha Filho, este último sócio de Lelinho na Annalu. A empresa faz parte do grupo Valor Commodities, que comercializa a produção das fazendas da família.
INFRAÇÕES SE ESPALHAM ATÉ A FRONTEIRA COM O PARAGUAI
As irregularidades ambientais se multiplicam. Em Dourados (MS), um inquérito civil foi instaurado pelo MPMS para apurar o desmatamento de “todas as áreas de preservação permanente e de Reserva Legal” da Fazenda Miya. Segundo a denúncia, o proprietário do imóvel seria Nilton Rocha Filho, mas foram citados como possíveis beneficiários do desmate o ex-governador Zeca do PT e o deputado estadual Zé Teixeira (PSDB).
Zeca é um tradicional ruralista do Mato Grosso do Sul, tendo sido denunciado pela Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) por sua atuação contra os Guarani Kaiowá e Terena. Foi durante sua gestão, entre 1999 e 2007, que foi deflagada a investigação do caso Campina Verde, envolvendo o grupo empresarial da família Rocha.
Teixeira, por sua vez, é um dos 42 políticos identificados no relatório “Os Invasores: parlamentares e seus financiadores possuem fazendas sobrepostas a terras indígenas“, deste observatório, como proprietário de terras incidentes em áreas indígenas. No curso da investigação, nenhum documento comprovou a ligação dos políticos ao dano ambiental, tampouco ao imóvel citado.
Atualmente, a empresa SS Agronegócio, de um primo dos Rocha, Cássio Basalia Dias, é quem responde pela Fazenda Miya, renomeada como Pau D’Alho. O inquérito civil em andamento investiga o desmatamento de 29,58 hectares de vegetação em áreas de regeneração e de vegetação nativa primária de Mata Atlântica.
Apesar de não constar como proprietário da Fazenda Pau D’Alho, Nilton Fernando Rocha Filho, um dos donos da Fazenda Annalu, assinou como fiador e permutante o contrato de compra da fazenda em 2019, ao lado da SS Agronegócio. Um ano depois, em 2020, a propriedade foi alvo de infração e teve área embargada pelo Ibama, por destruir 9,20 hectares de fragmentos de vegetação secundária em estágio inicial de regeneração. As infrações estão em nome da esposa de Cássio, Alessandra Motta dos Santos Basalia Dias, sócia na SS Agronegócio.
Em nome dela, constam junto ao Ibama infrações pelo desmatamento de 76 hectares no Sítio Novo Oeste, em Caarapó, município vizinho de Dourados. Em Porto Murtinho, na fronteira com o Paraguai, Alessandra é responsável pelo desmatamento de 41,5 hectares da Fazenda Retiro da Conceição.
No mesmo município, a Fazenda Baía das Conchas, do primo Lelinho Rocha, proprietário da fazenda de “Terra e Paixão”, é alvo de uma investigação do MPMS, que apura o desmatamento de 256,62 hectares em área de Mata Atlântica. Segundo o laudo que identificou a destruição via imagens de satélite, o imóvel recebeu a Autorização Ambiental nº 1893/2021, referente a corte de árvores nativas isoladas, válida de 10 de setembro de 2021 a 10 de setembro de 2025. No entanto, parte do desmate ocorreu fora das áreas licenciadas.
VÍDEO DETALHA RELAÇÕES POLÍTICAS E ECONÔMICAS DO CLÃ
Apesar da longa lista de irregularidades identificadas na Fazenda Annalu, não foi pelos atos contra o ambiente que a família Rocha ficou conhecida na região de Dourados. Aurélio, que tem o mesmo nome do filho Lelinho, seu pai Nilton Rocha Filho e seu irmão Nilton Fernando Rocha foram presos em 2006 por sonegação fiscal de pelo menos R$ 79 milhões, durante a administração de Zeca do PT. Depois de doze anos de processo, somente um deles foi condenado, Aurélio.
Na época, o grupo familiar se chamava Campina Verde. Em fevereiro de 2020, no início da pandemia, a empresa passou a se chamar Valor Commodities e os acusados pelas fraudes deixaram de ser sócios para a entrada de Lelinho e de seu primo, Nilton Fernando Rocha Filho. O comando, no entanto, continuou nas mãos de Aurélio e Nilton Fernando.
Cássio Basalia Dias, dono da SS Agronegócio e primo dos Rocha, chegou a ser investigado durante o processo da Campina Verde, mas teve a punibilidade extinta por decisão da 3ª Vara Federal de Campo Grande.
As relações do clã são exploradas em vídeo publicado no canal do De Olho nos Ruralistas no YouTube, que relata a proximidade da família Rocha com figuras importantes da política nacional. Além das videorreportagens, o observatório produz documentários sobre questão agrária, como Elizabeth e SOS Maranhão, e mantém editorias fixas sobre História e sobre as ações da bancada ruralista no Congresso.
Confira abaixo:
Fonte : O JACARÉ